A urgência da transição da economia linear para a economia circular mostra-se em diferentes esferas do cotidiano atual. Ao enfrentar as consequências da limitação dos recursos naturais e do colapso climático que já se instala atualmente, a sociedade amplia a conscientização e busca entendimento sobre os caminhos práticos que possibilitarão um futuro mais sustentável.
Na entrevista a seguir, o geólogo Marco Moraes, pesquisador de mudanças climáticas e autor do livro Planeta Hostil (Matrix Editora), apresenta bases teóricas sobre os pilares que definem a economia circular e estende a contextualização à mobilização dos atores que deverão participar ativamente da mudança almejada, incluindo o setor de celulose e papel.
O Papel — Quando e como surgiu o conceito da economia circular?
Marco Moraes, geólogo, pesquisador de mudanças climáticas e autor do livro Planeta Hostil (Matrix Editora) — Embora o conceito de economia circular não seja novo, aparecendo mesmo em filosofias antigas, a visão moderna sobre ele surgiu nas últimas décadas como uma resposta às limitações do modelo econômico linear tradicional (extrair, produzir, consumir, descartar), que está levando ao esgotamento de recursos naturais e a altos níveis de resíduos e poluição. Estamos atualmente extraindo 1,7 planeta por ano em termos de recursos naturais, ou seja, 70% a mais do que o planeta consegue regenerar, o que torna o atual sistema econômico claramente insustentável. A economia circular propõe um sistema regenerativo e sustentável, inspirado nos ciclos naturais, em que os recursos são mantidos em uso e reutilizados pelo maior tempo possível, com o objetivo de reduzir o impacto ambiental e maximizar o valor econômico. As bases do conceito foram formuladas no contexto das crescentes preocupações com a crise ambiental. O livro Limits to Growth, do Clube de Roma, publicado em 1972, foi um marco ao alertar sobre os limites do crescimento econômico baseado na exploração intensiva de recursos. Surgiu então a ideia de “ecologia industrial”, propondo que os sistemas industriais imitassem ciclos ecológicos, com resíduos de um processo servindo de insumo para outro. O conceito foi recentemente ampliado para o de uma “civilização ecológica”, baseada nos princípios naturais e na economia circular. As características principais da economia circular incluem: design regenerativo, que significa planejar produtos e processos para que sejam reparáveis, reutilizáveis e recicláveis; ciclo fechado de recursos, que propõe minimizar resíduos e maximizar a reutilização de materiais, e inspiração na natureza, a fim de modelar os sistemas econômicos como ciclos naturais, onde nada se perde, tudo se transforma. A economia circular reflete uma significativa mudança de paradigma, promovendo o uso sustentável de recursos e incentivando a inovação em todos os setores econômicos. A adoção da economia circular é essencial para garantir a continuidade do crescimento econômico e da qualidade de vida da sociedade.
O Papel — Como o tema vem avançando globalmente e como a pauta posiciona-se no Brasil atualmente?
Moraes — A economia circular tem ganhado destaque globalmente como uma estratégia para promover a sustentabilidade e enfrentar desafios ambientais. A partir de 2010, governos e organizações internacionais começaram a adotar o conceito. A União Europeia, por exemplo, integrou a economia circular em suas políticas de desenvolvimento sustentável, promovendo estratégias como reciclagem, reutilização, redução de desperdícios e manejo adequado dos resíduos finais. No Brasil, há uma série de iniciativas para estimular sua utilização. Entre elas destacam-se a Estratégia Nacional de Economia Circular (ENEC), lançada pelo governo brasileiro em junho de 2024, visando promover a transição do modelo linear para o circular, a partir de diretrizes para eliminar a poluição, reduzir a geração de resíduos e incentivar práticas sustentáveis ao longo da cadeia produtiva; a Política Nacional de Economia Circular, projeto de lei aprovado pelo Senado em março de 2024, com o objetivo de estimular o uso consciente dos recursos e priorizar produtos mais duráveis e recicláveis, e o Fórum Nacional de Economia Circular, instituído em setembro de 2024, com a finalidade de assessorar, monitorar e avaliar a implementação da ENEC, promovendo a articulação entre diferentes setores e níveis de governo. Também temos acompanhado as iniciativas empresariais. Segundo estimativas recentes, mais de 75% das empresas brasileiras têm alguma frente de trabalho relacionada ao conceito, como reciclagem de produtos e o uso de energias renováveis. No entanto, 70% delas não têm um plano integrado para a migração para a economia circular. O contexto atual demonstra o compromisso do Brasil em alinhar-se às tendências globais de sustentabilidade, promovendo a economia circular como um caminho para o desenvolvimento econômico sustentável e a preservação ambiental. Contudo, seus resultados ainda são de pequeno alcance. Como um todo, a economia brasileira ainda é dominantemente linear.
Segundo estimativas recentes, mais de 75% das empresas brasileiras têm alguma frente de trabalho relacionada ao conceito, como reciclagem de produtos e o uso de energias renováveis. No entanto, 70% delas não têm um plano integrado para a migração para a economia circular.
O Papel — Como você avalia o grau de conscientização nacional frente ao nível prático das iniciativas?
Moraes — A população brasileira demonstra crescente interesse por práticas sustentáveis, influenciada por campanhas educativas e maior acesso à informação sobre os benefícios ambientais e econômicos da economia circular. Apesar da conscientização sobre a economia circular ter crescido tanto na sociedade quanto nos diversos setores econômicos, observa-se uma diferença entre a percepção e a aceitação do conceito e sua aplicação prática. A real adoção de práticas circulares pela sociedade ainda é limitada. Fatores como falta de infraestrutura adequada para reciclagem, pouco esforço para a redução do desperdício e falta de incentivos à substituição de combustíveis fósseis, aliadas à ausência de políticas públicas eficazes e lacunas na educação ambiental, dificultam a implementação de ações concretas no cotidiano dos cidadãos.
O Papel — Neste contexto evolutivo, como você avalia o posicionamento da indústria de celulose e papel?
Moraes — A indústria de celulose e papel tem desempenhado um papel relevante na transição para a economia circular. Adotando práticas que buscam maior sustentabilidade e eficiência no uso de recursos, está se tornando uma referência importante nessa área. Já nas décadas de 1990 e 2000, o setor iniciou a implementação de práticas de manejo florestal sustentável, garantindo que a matéria-prima fosse proveniente de fontes renováveis e certificadas. Nos anos 2010, houve um avanço na adoção de tecnologias para redução do consumo de água e energia nos processos produtivos, além de investimentos em sistemas de reciclagem e reutilização de resíduos. E nos anos 2020, a indústria intensificou esforços para fechar ciclos produtivos, promovendo a reutilização de subprodutos e a valorização de resíduos, alinhando-se aos princípios da economia circular. Em resumo, a indústria de celulose e papel no Brasil tem avançado significativamente na adoção de práticas alinhadas à economia circular, demonstrando compromisso com a sustentabilidade. No entanto, desafios relacionados à escalabilidade, integração de cadeias produtivas e conscientização ainda precisam ser superados para consolidar plenamente esse modelo econômico no setor.
O Papel — A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) contribui para alavancar a economia circular? De que forma a regulamentação pertinente à gestão dos resíduos sólidos atua nesse processo transitório à almejada economia circular e, consequentemente, de baixo carbono?
Moraes — A PNRS, instituída pela Lei nº 12.305/2010, desempenha um papel essencial no fomento à economia circular no Brasil, ao estabelecer princípios e diretrizes para a gestão integrada e sustentável de resíduos sólidos. A regulamentação busca integrar o setor produtivo, o governo e a sociedade na redução do desperdício, promovendo a reutilização de materiais, a destinação adequada dos resíduos finais e o desenvolvimento de um modelo econômico de baixo carbono. Entre as iniciativas promovidas pela PNRS que contribuem para a economia circular estão prioridades na gestão de resíduos, a partir da adoção da hierarquia dos 3Rs (reduzir, reutilizar e reciclar) e princípios básicos da economia circular, que estimulam o fechamento de ciclos produtivos, garantindo que materiais sejam aproveitados ao máximo antes de se tornarem resíduos. Um dos pilares da PNRS é a logística reversa, que obriga fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes a implementar sistemas para coletar e dar destinação adequada a produtos pós-consumo, o que promove o reaproveitamento de materiais como embalagens, eletrônicos, pneus e medicamentos. A PNRS ainda incentiva o desenvolvimento de tecnologias e processos para a valorização de resíduos, transformando-os em insumos para novas cadeias produtivas, a exemplo de resíduos orgânicos sendo transformados em biogás ou compostagem em fertilizantes naturais. A PNRS também estimula as empresas a adotarem práticas de ecodesign, desenvolvendo produtos que sejam mais duráveis, reparáveis e recicláveis.
O Papel — Quais próximos passos e avanços necessários você vislumbra para o curto, médio e longo prazos?
Moraes — A indústria de papel e celulose, que já avançou significativamente na direção da economia circular, ainda enfrenta desafios para consolidar esse modelo em sua totalidade. Os próximos passos e avanços necessários podem ser divididos em curto, médio e longo prazos, considerando a transição para processos mais sustentáveis, integrados e de baixo carbono. Em curto prazo, destacaria melhorias na implementação da logística reversa, com o estabelecimento de sistemas eficientes para a coleta e reciclagem de produtos e embalagens. Melhorias da eficiência operacional, com investimentos em tecnologias que reduzam o consumo de energia e água em todos os seus processos também se posicionam entre o processo de melhoria contínua que pode trazer avanços em curto prazo. Aumentar a utilização de subprodutos da produção de celulose em novos produtos, como biocombustíveis e materiais químicos, também reflete uma tendência de curto prazo. Já entre as metas de médio prazo, citaria a criação de novos produtos baseados em biopolímeros e materiais reciclados, o fortalecimento de parcerias estratégicas para o desenvolvimento de soluções inovadoras e sustentáveis, além da promoção de programas de educação para consumidores e empresas, incentivando a reutilização dos produtos ou a sua reciclagem.
Para o longo prazo, apontaria a substituição completa dos combustíveis fósseis por fontes de energia renováveis nas operações de produção, a continuidade de investimentos em P&D para desenvolver novas tecnologias e processos que se alinhem com os princípios da economia circular, e o trabalho conjunto com governos para criar políticas que incentivem práticas de economia circular e sustentabilidade. Ao seguir esses passos, a indústria de papel e celulose se tornará cada vez mais sustentável e eficiente, alinhando-se com os objetivos da economia circular e contribuindo para um futuro de baixo carbono.
O Papel — Ainda pensando neste cenário futuro, a interação entre diferentes setores pode ser benéfica, se pensarmos em benefícios conjuntos proporcionados pelo conceito de inovação aberta? Quais potenciais, por exemplo, poderiam ser melhor explorados?
Moraes — A interação entre diferentes setores relacionados à indústria do papel, por meio da inovação aberta, apresenta um enorme potencial para promover a economia circular e gerar benefícios conjuntos. A inovação aberta, que envolve a colaboração entre empresas, universidades, startups, governo e outros agentes, pode acelerar a solução de desafios complexos, criar novos produtos e modelos de negócio, e impulsionar a transição para um modelo econômico mais sustentável. Há muitos potenciais benefícios da inovação aberta para a indústria do papel, a começar, por exemplo, pelo aproveitamento de resíduos como recursos para outros setores. Subprodutos da fabricação de celulose e papel, como lignina e cinzas de caldeiras, podem ser utilizados em setores como construção civil, energia e agronegócio. Parcerias com indústrias químicas e farmacêuticas destacam-se como outros exemplos que podem explorar os compostos extraídos da biomassa florestal para criar bioplásticos, químicos verdes, e até medicamentos. Com o setor de embalagens, é possível desenvolver soluções biodegradáveis ou compostáveis que substituam o plástico em larga escala. Quando direcionamos o olhar ao processo fabril, vemos oportunidades de circularidade no ciclo da água. A colaboração com empresas de saneamento e tratamento de água pode otimizar o reaproveitamento da água utilizada nos processos industriais, sem contar o possível desenvolvimento de tecnologias para transformar efluentes industriais em recursos utilizáveis por outras indústrias. Em colaboração com empresas de logística, a indústria pode implementar modelos mais eficientes de logística reversa, reduzindo custos e aumentando o reaproveitamento de resíduos. Parcerias com startups de economia compartilhada podem criar sistemas para coleta de resíduos diretamente de consumidores ou pequenas empresas. Já no âmbito de educação e sensibilização do consumidor, parcerias com ONGs, universidades e empresas de marketing podem promover campanhas educativas sobre economia circular e a importância do uso consciente de produtos de papel e seus derivados. Vale acrescentar que, a partir dessa colaboração com outras empresas e a sociedade, a indústria de papel e celulose presta um papel extremamente relevante para a adoção da economia circular e a conquista da sociedade sustentável e carbono zero.