Escrevo esta coluna poucos dias após a aprovação, pela Câmara dos Deputados, do projeto de lei complementar n.º 68/2024 (PLP 68), proposto pelo Governo Federal para regulamentar parte da Reforma Tributária instituída pela Emenda Constitucional n.º 132/2023. O texto seguiu para o Senado Federal, onde se discute a sua votação ou não em regime de urgência. É o que deverá ocorrer, notadamente em razão do desejo político dos atuais presidentes das duas Casas Legislativas de colarem os seus nomes à regulamentação dessa importante reforma. Em paralelo, aguarda-se a análise do projeto n.º 108/2024 (PLP 108), apresentado pelo Poder Executivo para regulamentar o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), órgão que terá competências relacionadas à distribuição do produto da arrecadação do imposto, à retenção de saldos acumulados de créditos não recuperados pelo contribuinte, à edição de regulamento único para o imposto, à uniformização e aplicação da legislação do IBS, e à resolução de conflitos no contencioso administrativo. Sem prejuízo das alterações que venham a ocorrer no Senado Federal, vejamos, resumidamente, alguns dos pontos do PLP 68 que mais chamaram a atenção durante a sua tramitação na Câmara:
Fornecimentos ao Poder Público: definiu-se que o fato gerador do IBS e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) ocorrerá, nessas hipóteses, apenas quando houver o respectivo pagamento dos bens ou serviços fornecidos.
Não incidência do IBS e da CBS: sobre transferência de bens entre estabelecimentos do mesmo contribuinte; sobre transmissão de participação societária, incluindo alienação, baixa e liquidação; sobre transmissão de bens em decorrência de fusão, cisão, incorporação e integralização de capital; sobre rendimentos financeiros e operações com títulos ou valores mobiliários que não estejam alcançadas pelo regime específico de incidência do IBS e da CBS; sobre dividendos, juros sobre capital próprio e resultados de avaliação de participações societárias; sobre doações sem contraprestação em benefício do doador; sobre transferências de recursos públicos a ONGs, e sobre destinação de recursos por sociedade cooperativa a fundos e a distribuição de suas sobras de resultado.
Não contribuintes: foram assim definidos o condomínio edilício, o consórcio, a sociedade em conta de participação, o nanoempreendedor – pessoa física com receita bruta anual de até R$ 40,5 mil e que não tenha aderido ao regime do MEI – e os fundos de investimento – inclusive os Fundos de Investimento Imobiliário (FII) e os Fundos de Investimentos nas Cadeias Produtivas do Agronegócio (Fiagro), observadas certas condições –, exceto quando liquidarem recebíveis antecipadamente.
Plataformas digitais: serão responsáveis pelo recolhimento do IBS e da CBS quando o fornecedor for residente ou domiciliado no exterior ou quando, estabelecido no País, não estiver inscrito como contribuinte e não emitir documento fiscal para a operação.
Não cumulatividade e operações desoneradas: será mantida a regra atual de que operações imunes, isentas ou sujeitas a alíquota zero não geram créditos, enquanto a imunidade ou isenção da operação realizada pelo contribuinte demandará a anulação dos créditos das operações anteriores correspondentes. Isso não se aplicará, em princípio, aos casos de operações sujeitas a alíquotas reduzidas.
Não cumulatividade condicionada ao pagamento: contrariando a literalidade do artigo 156-A, § 1º, inc. VIII, da Constituição, o PLP 68 pretende vincular o crédito de IBS e CBS ao pagamento desses tributos pelo fornecedor.
Não cumulatividade, split payment e reserve charge: como forma de operacionalizar essa vinculação, o projeto estabelece como regras: (i) o recolhimento dos tributos na liquidação financeira da operação (split payment), quando realizada por instrumento de pagamento eletrônico; ou (ii) o recolhimento pelo próprio adquirente (reverse charge), quando utilizado outro mecanismo de pagamento.
Conceito e modalidades de split payment: os prestadores de serviços de pagamento eletrônico deverão segregar e recolher ao Comitê Gestor do IBS e à Receita Federal, no momento da liquidação financeira da transação, os valores do IBS e da CBS devidos após a compensação com créditos de titularidade do contribuinte (modalidade automática). Caso a verificação dos créditos não possa ser feita automaticamente, o prestador do serviço de pagamento eletrônico recolherá o IBS e a CBS incidentes sobre a operação, ficando a cargo do Comitê Gestor e da Receita Federal verificar os créditos que poderiam ser deduzidos em razão da não cumulatividade, transferindo ao contribuinte, em até três dias, os valores de IBS e CBS eventualmente segregados e recolhidos a maior (modalidade manual). Por fim, o contribuinte poderá optar por uma modalidade simplificada, para operações destinadas a não contribuintes dos dois tributos, no qual os valores de IBS e CBS a serem segregados e recolhidos serão calculados com base em montantes pré-estabelecidos.
Bens e serviços de uso e consumo pessoal: segundo aprovado na Emenda Constitucional n.º 132, bens e serviços de uso e consumo pessoal do contribuinte não permitirão a apropriação de créditos do IBS e da CBS. O PLP 68, todavia, lançou mão de um mecanismo dúbio – e, a meu ver, inapropriado – para lidar com o tema: (i) definiu, mediante uma lista exaustiva, quais seriam os bens e serviços de uso e consumo pessoal que não dariam direito a crédito (artigo 30); mas (ii) estabeleceu uma lista exemplificativa, no seu artigo 39, do que será considerado fornecimento não oneroso de bens para uso e consumo, situação em que o crédito da operação anterior acabará sendo anulado pelo pagamento do IBS e da CBS no fornecimento não oneroso. Esse mecanismo atinge em cheio os chamados fringe benefits ofertados pelas empresas aos seus colaboradores, como auxílio para habitação, celulares, serviços de saúde, bolsas de educação e alimentação. Planos de saúde, vale-refeição e vale-alimentação, quando previstos em convenção coletiva de trabalho, não deverão ser tributados. Uniformes, fardamentos e EPIs também foram excluídos desse tratamento.
Ressarcimento: o contribuinte que apurar saldo credor de IBS e CBS ao final do período poderá solicitar o seu ressarcimento, o que deverá ocorrer: (i) no prazo de 30 dias, para os contribuintes que aderirem a programas de conformidade; (ii) em 60 dias, no caso de créditos relativos à aquisição de bens e serviços incorporados ao ativo imobilizado e desde que o valor a ressarcir seja igual ou inferior a 150% do valor médio mensal da diferença entre créditos e débitos apurados nas operações do contribuinte; ou (iii) em 180 dias, nas demais situações.
Alíquotas do IBS e da CBS – possibilidade de limitação: incluiu-se regra no artigo 465, do PLP 68, prevendo a possibilidade de limitação da alíquota total dos dois tributos a 26,5%, a partir de 2032, a depender da primeira avaliação quinquenal da sua arrecadação de 2026 a 2032. Os critérios para tal avaliação, todavia, são extremamente abrangentes e muito pouco objetivos, podendo incluir até mesmo o “impacto da legislação do IBS e da CBS na promoção da igualdade entre homens e mulheres e étnico-racial”. A sua efetividade desse limite, portanto, é bastante duvidosa.
Alíquotas para fornecimentos à administração pública direta, autarquias e fundações públicas: tais operações poderão ser objeto de fatores de redução calculados, de 2027 a 2033, conforme as variáveis do artigo 369 do PLP 68. O fator estabelecido para 2033 deverá ser observado de 2034 em diante. Foram regulados os regimes específicos de apuração do IBS e da CBS, como tais entendidos aqueles que envolvem regras especiais quanto a alíquotas, não cumulatividade e base de cálculo.
Regimes específicos: foram também esmiuçados os regimes diferenciados, que compreendem reduções do IBS e da CBS nos percentuais de 30%, 60%, 100% e isenção. Dentre os itens sujeitos à redução de 60%, foram abarcados: (i) os produtos agropecuários, aquícolas, pesqueiros, florestais e extrativistas vegetais in natura; e (ii) os insumos agropecuários e aquícolas descritos no anexo X do PLP 68, incluindo-se aí bens e serviços relacionados ao melhoramento genético de plantas e biotecnologia, além de biofertilizante, bioestimulantes e diversos serviços agrícolas.
Regimes favorecidos: foram ainda regulados os regimes favorecidos aplicáveis para microempresas e empresa de pequeno porte (Simples Nacional), bem como para biocombustíveis e hidrogênio verde, a fim de assegurar-lhes tributação inferior à dos combustíveis fósseis.
Cashback: mirando a população de mais baixa renda, além de veicular listas de produtos da cesta básica nacional de alimentos (sujeitos a alíquota zero), de produtos alimentícios e de higiene com redução de 60% do IBS e da CBS, o PLP 68 regulamentou o mecanismo de devolução total ou parcial desses tributos cobrados em determinadas compras, quando realizadas por consumidor responsável por unidade familiar inscrita no CadÚnico.
Regimes aduaneiros especiais: foram resguardados os regimes aduaneiros de trânsito, depósito, permanência temporária, aperfeiçoamento, Repetro, zonas de processamento de exportação, Reporto e Reidi, inserindo-se, ainda, a possibilidade genérica de serem definidas hipóteses de suspensão do IBS e da CBS para as importações e aquisições no mercado interno de bens de capital. Lembre-se, finalmente, que o PLP 68 também regulamentou o chamado “imposto do pecado”. O Imposto Seletivo (IS) deverá incidir sobre a produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, tendo sido como tais considerados: embarcações e aeronaves, produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, bebidas açucaradas e bens minerais extraídos da natureza, concursos de prognósticos, fantasy sports e veículos automotores (incluindo-se os elétricos e híbridos, mas se excluindo os caminhões).
Leia aqui o artigo publicado originalmente na Revista O Papel